Literatura engajada

Sunday, February 18, 2007


A LITERATURA ENGAJADA DE PEPETELA

MANTOLVANI, Rosangela Manhas
UNESP - Universidade Estadual Paulista/ CAPES
Este trabalho é um resumo do Capítulo II da Dissertação
Guerrilheiros, Heróis, Angolanos: as personagens de Pepetela.
Unesp- Assis/ 2005.

A obra do autor angolano Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, o Pepetela, premiada no exterior e em seu próprio país, veicula idéias libertárias que permitem a seus leitores a apropriação de um ideário político-filosófico fundamental à reflexão dos novos rumos idealizados para a sociedade angolana.

Segundo Inocência Mata, na obra do autor angolano, é inegável a forte presença da ideologia e do caráter pedagógico em alguns de seus romances, como assegurou o próprio autor em entrevista, e como reitera Mata em seu artigo: "Pepetela não enjeita, pois, essa vertente ideológica de sua obra."(MATA, 2002, p. 199).

Segundo nossa perspectiva, a vertente ideológica na obra de Pepetela traduz-se na temática da luta pela libertação do território angolano, presente principalmente nos trabalhos produzidos entre 1969 e 1991, cujo tema principal é a formação da nação angolana.

Esta abordagem tratará da vertente ideológica presente nas obras As aventuras de Ngunga (1972), Mayombe (1971) e A geração da utopia (1992) e da forma como se apresenta essa ideologia na escrita do autor, de forma a realizar algumas reflexões sobre o perfil do autor engajado e o engajamento literário em diferentes momentos históricos, tratando de atender a uma cronologia possível.

Partimos da afirmação de Terry Eagleton de que "Literatura, no sentido que herdamos da palavra, é ideologia. Ela guarda as relações mais estreitas com questões de poder social" (EAGLETON, 2001, p. 30). O que Eagleton procura demonstrar é como a literatura e, especialmente, a teoria da literatura prestou-se, de singulares formas (seja silenciando, seja contrariando), à ideologia vigente em diferentes épocas e, inclusive, atendendo aos interesses de determinados grupos econômicos e/ou políticos.

A ideologia engloba a totalidade das concepções culturais de um determinado grupo social, em uma determinada fase de sua evolução história. Para Marx, é sobre o conjunto das relações de produção que constitui a estrutura econômica da sociedade, ou seja, sobre a base econômica, que se eleva a superestrutura jurídica e política, a que correspondem "certas formas de consciência social determinadas". Marx, no entanto, denuncia a ideologia como falsa consciência, como máscara, como um conjunto de elementos teóricos pseudocientíficos não a conscientizar a verdade histórica, mas a contorná-la por adversa, a fim de justificar privilégios materiais. (MARX, 1977, p. 36-39)

Em toda sociedade coexistem, no mínimo, duas ideologias nitidamente perceptíveis: a da classe dominante, que prima pela conservação da ordem existente com o objetivo de preservar seus privilégios; e a da classe dominada que busca ou luta pela superação dessa ordem e tem o objetivo de implantar uma nova ordem.

Já em 1960, Barthes interrogando sobre o engajamento da literatura, em um artigo dedicado a Kafka, dizia: "A nossa literatura será (...) sempre condenada a esse vai-e-vem esgotante entre o realismo político e a arte pela arte, entre uma moral do engajamento e um purismo estético, entre o compromisso e a assepsia?" (BARTHES, 1964, p.138 apud DENIS, 2002, p. 18), cujo questionamento parece indicar que o engajamento político na arte é extensivo a toda a história da literatura, de forma que sua presença na obra de arte propõe uma relação com os fatos políticos de uma determinada sociedade e seu tempo histórico, em uma relação de oposição ao purismo da "arte pela arte".

O risco que essa visão oferece é considerar-se que na história literária possa ter ocorrido uma alternância entre movimentos veiculadores da "arte pura" e movimentos divulgadores da "arte social" ou engajada, o que, do ângulo que examinamos a questão, não corresponde à melhor perspectiva. Sobre a produção purista que viabiliza a concepção da "arte pela arte", é possível considerar que essa posição aparentemente "a-política" da arte implica também em um posicionamento político que pode favorecer a classe dominante no momento histórico que ela busca representar. Sobre essa questão, Adorno esclarece que:

(...) A obra de arte engajada desencanta o que só pretende estar aí como fetiche, como jogo ocioso daqueles que silenciaram de bom grado a avalanche ameaçadora, como um apolítico sabiamente politizado. Diz-se que desvia da luta dos interesses reais. Que o conflito dos dois grandes blocos não poupa mais ninguém. (...) (ADORNO, 1973, p.51)

Theodor Adorno deixa clara a posição do apolítico tanto quanto sua relação com a obra que procura funcionar como mero objeto de fetiche, uma forma de silenciar sobre as ameaças oferecidas pela sociedade em que se vive e, ainda, de preservar a arte como instituição fechada e isolada dos fatores políticos e sociais.

Flávio Kothe, interpretando as idéias de Adorno sobre os trabalhos de Lukács observa que o segundo não considera o caráter autônomo da obra de arte de forma suficiente, enquanto Adorno talvez o considere em excesso, de forma que a obra se torna conhecimento como totalidade em si mesma, e não por meio de intenções esparsas em momentos isolados dela. Essa conclusão de Adorno contrapõe-se a qualquer engajamento que se apresente de maneira fácil e apressada.

Os debates sobre o engajamento, bem como suas formas de manifestação e o grau de envolvimento dos autores engajados eram o tópico de muitas discussões críticas na primeira metade do século XX, seja entre a direita e a esquerda, ou entre a própria esquerda, cujo objetivo era procurar um caminho em que as questões da sociedade, suas ideologias, bem como seus sistemas econômicos pudessem ser debatidos também por meio da literatura. Esta, por sua vez, estaria funcionando como veículo de conscientização dos seres humanos, revelando-lhes as influências dos sistemas econômicos no quotidiano dos indivíduos.

A literatura engajada no século XX adquiriu uma valoração que transcende a história e surge em função do aparecimento de um espaço literário em que a autonomia e a independência dos escritores eram princípios fundamentais, possibilitando-lhes exercer a liberdade de expressão e articularem-se ideologicamente a quais idéias lhes parecessem mais conveniente. (DENIS, 2002, p. 21)

As décadas de 20 e 30 do século XX encontraram os escritores preocupados com a reocupação de seu papel no terreno da crítica social e política, o que viabilizou uma saída para os homens de letras: o engajamento. Reconheceu-se, a partir de então, o tipo de produtor literário conhecido como "autor engajado", cujo modelo maior se encontra em Jean-Paul Sartre.

É no prefácio de seu Que é a literatura? que Sartre oferece uma visão da situação do escritor diante do grupo social que o lê: a burguesia. Sua posição postula por uma relação entre a produção da obra e seu consumidor, de forma a evidenciar uma necessidade que tem o escritor de se abraçar estreitamente ao seu momento social, uma vez que sua época foi feita para ele e ele foi feito para sua época. Para ele, o escritor tem uma situação em sua época, por isso, cada palavra sua repercute, assim como cada silêncio. Ao tomar partido na singularidade de sua época, percebendo os valores eternos que se encontram imiscuídos no debate social ou político, é que o autor unir-se-á ao eterno.

Segundo Sartre, a intenção do escritor deve ser a de contribuir para que se produzam certas mudanças nas sociedades das quais fazem parte, colocando-se ao lado daqueles que pretendem mudar a condição social do homem e, ainda, a concepção que o homem tem de si mesmo. Dessa forma, os escritos devem posicionar-se em relação aos acontecimentos políticos e sociais que surjam nos diferentes momentos, nas diversas sociedades. Esse posicionamento não implica, necessariamente, um engajamento a um partido político, mas um esforço em extrair uma concepção do homem (baseado nos princípios de Igualdade, Liberdade e Fraternidade) na qual se inspirarão as análises das teses que possam ser debatidas nos veículos literários.

Sob a visão sartreana, tanto os aspectos sociais do indivíduo, no que diz respeito à sua classe, à sua família, à sua condição, quanto as suas características como pessoa, como ser único, devem ser o tópico dos sistemas políticos de forma que estes ofereçam ao homem o que lhes há de mais caro: a liberdade. E é essa liberdade do ser humano, especialmente a do proletariado, que Sartre veicula em seus produtos literários: na revista ou em seus ensaios.

Em Que é a literatura?, o autor trata de definir algumas questões fundamentais, como "O que é escrever?", "Por que escrever?", "Para quem escrever?" , examinando a arte de escrever, de construir com a linguagem escrita os significados do universo. Define que um escritor é engajado quando faz o engajamento passar de si para os outros, da espontaneidade imediata ao plano refletido, sendo um mediador de idéias, por excelência, e seu engajamento é a mediação, definindo-se, então, por um conjunto de atitudes que redundam em suas obras literárias, em uma explícita posição política, inserindo sua produção como um veículo do debate sócio-político. (SARTRE, 1987, p. 66-87) Seu discurso compreende posicionamentos políticos e sociais explícitos que, após a revolução de Outubro, na Rússia, provocariam uma divisão ideológica tanto entre os autores europeus quanto entre os escritores dos demais países do mundo, entre direita e esquerda e, principalmente, entre escritores engajados e não-engajados.

O discurso do escritor engajado pauta-se por uma causa a defender, uma idéia a discutir, um projeto a apresentar, consciências a transformar, de forma a projetar utopias, ou denunciar os desacordos e as injustiças impostas por determinados sistemas econômicos e sociais, aos quais apresenta uma contra-ideologia.

Embora os pressupostos bartheanos da década de 50 tenham oferecido novos olhares sobre a questão do engajamento literário, por meio da contestação formal a Sartre, e o engajamento apareça como uma noção historicamente situada, a reconfiguração do engajamento em cada período da história literária apresenta um perfil singular. Se na Europa da década de 50 do século XX, o engajamento literário parecia obsoleto, o mesmo não se pode dizer a respeito desse compromisso da literatura na África das décadas de 60 a 80 do mesmo século. Segundo Benoît Denis,

O espaço das possibilidades no qual se coloca o escritor não é idêntico em todas as épocas; ele está em constante mutação e não pára de se reconfigurar, dando a cada período da história literária o seu perfil singular. Também a definição do que é literatura engajada se singulariza no mesmo passo que o espaço das possibilidades no qual ele se insere. (DENIS, 2002, p. 27)

Reconfiguradas no espaço angolano, em uma época de absoluta necessidade do envolvimento intelectual nas lutas de libertação, as noções de engajamento e de literatura engajada, ou "de resistência", como ficou conhecida, se pronunciariam em Angola, tendo como veículos as obras de autores engajados, que, associados em movimentos culturais e literários, posteriormente, articularam um movimento revolucionário de independência, oferecendo suas obras à luta pela causa comum.

O engajamento literário pressupõe a existência de três componentes fundamentais indicados por Sartre (1989), e, dessa maneira, tomando como base as reflexões daquele filósofo, chega-se à compreensão que "engajar-se" implica em 1) colocar sua palavra em penhor, em fazer uma escolha; 2) tomar uma direção, integrando-se a uma empreitada e, finalmente, 3) estabelecer uma ação, voluntária e efetiva, que materializa a escolha efetuada de forma voluntária. Assim, "o escritor engajado é aquele que assumiu, explicitamente, uma série de compromissos em relação à coletividade, que ligou-se de alguma forma a ela por uma promessa e que joga nessa partida a sua credibilidade e a sua reputação" (DENIS, 2002, p.31)

Em Angola, muitos escritores iriam assumir, explicitamente, compromissos em relação à sociedade, jogando não apenas suas credibilidades, reputações, mas suas próprias vidas, aliados a promessas de esperança e liberdade na luta contra o colonialismo que durou cerca de cinco séculos. De acordo com M.A. S. Santos, "escrever, desde o início em Angola, se tornou sinônimo de combate - a palavra literária, além de arte foi também forma de militância." E, ainda, "os intelectuais do MPLA fizeram da literatura um objeto de luta política." (SANTOS, 2000, p. 33- 34)

Leonel Cosme, analisando as relações entre a literatura e a Revolução, em Angola, observa que:

" (...) concluir que o pensamento marxista enforma as cúpulas dos dirigentes da revolução angolana - explica muito menos que uma clara opção política à partida do que a exigência cultural nascida da verificação de um método de análise de um problema universal de relações de produção e a luta de classes. (COSME, 1978, p.13) (grifo nosso)

A ênfase de Leonel Cosme recai sobre a clara opção política dos intelectuais angolanos, cuja base ideológica era o marxismo, o que, porém, se justifica pelo problema das relações humanas, entre os colonizadores e os colonizados, de forma que a revolução viabilizasse uma transformação nas relações de classes e nos sistemas de produção, como forma de proporcionar autonomia aos filhos da terra, a liberdade política e econômica e uma sociedade mais justa, em que a escravidão e o "contrato1", fossem abolidos.

Nomes, como os dos escritores Agostinho Neto, Viriato da Cruz, Mário Pinto de Andrade, Luandino Vieira, António Jacinto, António Cardoso, Manuel Lima, etc. iriam compor o panteão do engajamento literário em Angola, como autores militantes da revolução, e que, mesmo afastados de seu curso atual ou futuro político, estarão definitivamente associados à história da época em que os movimentos se formaram, os fins dos anos 50 do século XX, definindo a "literatura angolana", em seu contexto institucional, e, ainda, estético, político e cultural.

No passo desses escritores, outros se engajaram por essa época e suas primeiras produções surgem no final da década de 60 e início da de 70, como é o caso de Pepetela, cuja militância se inicia em 1961, com a adesão ao Partido MPLA, em 1963. Já o trabalho de engajamento político-literário principia em 1969, com a produção de Muana Puó. Suas obras mais militantes, no entanto, são produzidas mais tarde: em 1971, Mayombe; 1972, As aventuras de Ngunga e, posteriormente, em outros tantos trabalhos que se inserem nessa militância e engajamento político-social, cujo percurso parece não ter um limite preciso ou ponto de chegada. Sua principal arma, o discurso, é disponibilizada em função de uma sociedade que se quer progressista, igualitária, despida de preconceitos e processos que impeçam sua integração internacional, preservando suas raízes culturais, e construindo uma identidade nacional que se pretende livre de racismos, tribalismos e regionalismos.

Compreendemos discurso como o conjunto de pressupostos e subentendidos implícitos ao nível significativo do texto. E os pressupostos e subentendidos das obras pepetelianas indicam um comprometimento com a causa política e a luta pela libertação do país, tanto no período da independência, que se consolida em 11 de novembro de 1975, quanto no período da guerra civil, durante os anos que se seguiram, até a morte de Jonas Savimbi (em 2002), revolucionário e líder do partido de oposição, a UNITA.

Ora, se o objetivo da luta de libertação de Angola era justamente a liberdade política, como poderiam as narrativas As aventuras de Ngunga e Mayombe privarem-se do discurso sobre a política? Em função desse tipo de discurso que, em muitos episódios, é predominante nas falas de algumas personagens, concluímos que os seres ficcionais engajados de Pepetela são constituídos de forma a integrarem-se "na espinha dorsal [do] romance, (...) a Estória" (FORSTER: 1969:21), ressaltando em suas falas tanto a faceta da política quanto a ideologia que a precede, oferecendo coerência à obra.

Irwing Howe, estudando as relações entre a política e a literatura no romance concluiu que o romance político se constitui como um texto "no qual assumimos serem dominantes as idéias ou o milieu político, um romance que permita essa pressuposição sem que com isso sofra qualquer distorção radical e que, em decorrência, propicie a possibilidade de algum lucro analítico." (HOWE, 1998, p. 5) No estudo, detém-se, ainda, a especificar a apresentação das personagens de um romance político, indicando como características principais que a idéia de sociedade penetra na consciência das personagens em todos os seus aspectos profundamente problemáticos, e refletem-se em seus comportamentos, estando estas conscientes de suas relações e lealdades políticas, bem como de suas identificações ideológicas. Geralmente, essas personagens aparecem organizadas ou arregimentadas em segmentos fortificados dentro da sociedade, como grupos ou classes, e fazem isso em nome de uma esperança, de uma ideologia.

Para que um romance político possa atender a sua forma "ideal", ele deve ser uma obra de tensões internas, contendo tanto a representação dos comportamentos e sentimentos da humanidade quanto a absorção, em suas linhas internas, dos fluxos da ideologia moderna. A dialética engenhosa do romance político prevê a capacidade de manipular várias idéias, como em Mayombe, ou em A geração da utopia, apresentá-las em suas relações hostis, porém, interdependentes, apesar de diversificadas, e, ainda, a instigar a compreensão dos modos pelos quais essas idéias podem ser representadas sem que pareçam as de um programa político.

As idéias e ideologias ganham vida em Pepetela, dotando as personagens de capacidades e habilidades que as conduzem a ações e sacrifícios apaixonados em nome da ideologia e da liberdade, impulsionando-as ao oferecimento de suas vidas, mas criando a ilusão no leitor de que possuem um movimento independente, autônomo, que não atendem aos desejos de uma força maior, parecendo mesmo personagens ativas. Embora muitas personagens pepetelianas sejam movidas pela ideologia marxista, abraçada pelos intelectuais do MPLA como suporte para a luta contra o colonialismo, outras são mobilizadas por contra-ideologias, que se prestam a estabelecer relações dialéticas nas narrativas, propiciando o dialogismo e o aparecimento de tensões no discurso.

Em entrevista a Michel Laban (em 1988), Pepetela faz questão de enfatizar o seu engajamento político nas obras que produziu entre 1969 e anos seguintes, que compreendem o período da revolução angolana e seus desdobramentos. Diz ele:

__ Há uma vivência à saída de Portugal, passagem por França e fixação em Argélia, por um lado. Há os estudos de sociologia. Há, fundamentalmente, um engajamento político muito maior - uma atividade muito mais intensa no aspecto político - e há também dois ou três livros no meio..., dos quais dois romances que desapareceram. (...) (LABAN, s/d, p. 777)

O engajamento político a que se refere Pepetela encontra-se associado a seu ingresso, em 1963, para o MPLA, quando inaugura o Centro de Estudos Angolanos, em Argel, posteriormente transferido para Brazzaville, e, ainda, ao período que passou nas Frentes Guerrilheiras, em Cabinda, onde nasceu a obra Mayombe, e depois, na Frente Leste.

Político, o espaço de Mayombe é povoado de seres cujos projetos, ações e comportamentos são delineados por uma ideologia que os configura como personagens da política de resistência ao colonialismo, cujas infâncias infelizes se descortinam e se associam à ação revolucionária, como uma forma de garantir a esperança de uma maturidade e velhice mais livres e felizes, senão para si mesmos, para seus descendentes. A política dos heróis de Mayombe concentra-se na discussão dos conflitos que constituem problemas para o ideal revolucionário e a superação das diferenças grupais, surgindo como luz a iluminar as consciências revolucionárias que se formam nas escolas das frentes guerrilheiras, pelas ações políticas do Comissário ou pelas ações e idéias político-filosóficas do herói e ideólogo Sem Medo, comandante do MPLA na narrativa.

A faceta política da obra As aventuras de Ngunga concentra-se na temática dos valores morais do guerrilheiro ideal, o homem novo, que surge a partir da idéia de coragem e enfrentamento das falhas humanas e sua superação, na inclusão do herói como membro de um movimento revolucionário em prol da independência do país, no seu engajamento no MPLA, em cujo seio encontraria o objeto de sua busca, no posicionamento revolucionário, na aprendizagem dos valores marxistas, no acesso aos instrumentos e tecnologias do colonizador. Esses elementos o levariam à compreensão do projeto de nação a ser construída no território de Angola, após a incansável busca desse órfão, e suas inúmeras decepções pelas mortes dos membros da família, dos amigos e da impossibilidade do amor de Uassamba.

Na obra A geração da utopia, que reorganiza uma discussão sobre os principais momentos vividos por um grupo de jovens estudantes e seus percursos pelos diferentes períodos da formação da nação angolana, a política é o tema central dos debates, incluindo personagens que se associaram aos dois principais movimentos político-revolucionários que lutaram pela independência de Angola, vistos sob o olhar de um narrador engajado a um deles, o MPLA. No entanto, o mesmo narrador oferece voz aos elementos que antagonizaram com os futuros donos do poder, por meio da personagem Elias, focalizada pelo viés satírico. Assim, também, configura a personagem defensora dos ideais regionalistas, Vítor, no episódio "A Chana", como forma de oferecer voz a todas as visões ideológicas que percorriam o território naqueles períodos decisivos para o destino do povo angolano. No texto, os novos ocupantes do poder representando o MPLA, agora partido político, não escapam a uma crítica ácida pela forma como conduziram os rumos da nação. Sob esse aspecto, as falhas do sistema sócio-econômico-político não passam despercebidas à análise rigorosa de Aníbal, um ex-Comandante, herói do MPLA.

O desencanto com a política e o marxismo se revelam nos entreditos do discurso, por meio de pressupostos e subentendidos, ou mesmo explicitamente, de forma a configurar um herói desarmado e decepcionado com os rumos que o país tomou nos últimos anos, vitimado pelas desigualdades sociais, pelos regionalismos e os processos de corrupção no meio político, empresarial e religioso. Em razão desses elementos, é possível afirmar que A geração da utopia se consolida como uma renúncia às formas da política que se organizaram no território angolano após o ano de 1991.

Por estes e outros aspectos, consideramos que a obra de Pepetela, estudada neste trabalho, consolida-se como o que se convém chamar de "novo romance político", um romance nascido em terras onde a literatura exerceu e continua a exercer uma função essencial na luta pela emancipação das massas, cujas principais idéias veiculadas tratam de questões políticas, que denunciam por meio do particular, o panorama político internacional e que, ainda, prestou-se à conscientização de uma determinada categoria de homens: os guerrilheiros, que aprendiam a ler e escrever nas bases militares, recebendo formação política de cunho marxista-leninista, aprimorando suas capacidades e habilidades para a compreensão das ciências e das relações do mundo dito "civilizado". Social e socializante, a literatura de Pepetela prestou-se a um papel humano de libertação e conscientização que engloba os principais pressupostos de engajamento ditados por Sartre em seus escritos.

BIBLIOGRAFIA

ABDALA JR., Benjamin. Literatura, História e política. São Paulo: Ática, 1989.

ADORNO, Theodor. Notas de literatura. Trad. de A. Galeão e I. A. Silva. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973.

BARTHES, Roland. O grau zero da escritura. São Paulo, Cultrix, 1971.

COSME, Leonel. Literatura e Revolução. Lisboa: África, 1978.

DENIS, Benoît. Literatura e engajamento de Pascal a Sartre. Trad. Luiz D. A Roncari. Bauru - SP: Edusc, 2002.

EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. Trad. Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

HOWE, Irwing. A política e o romance. trad. Margarida Goldsztajn. São Paulo: Perspectiva, 1998. (212 p)

KOTHE, Flávio René. Benjamin & Adorno: confrontos. São Paulo: Ática, 1978.

MARX, Karl. A ideologia alemã. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

MATA, Inocência. "Pepetela: a releitura da história entre gestos de reconstrução". In: CHAVES, Rita; MACEDO, Tania (org.). Portanto...Pepetela. Luanda: Livraria Chá de Caxinde, 2002, (195- 212).

PEPETELA. As aventuras de Ngunga. São Paulo: Ática, 1981 .

__________. A geração da utopia. Porto Alegre: Nova Fronteira, 2000.

__________. Mayombe. São Paulo: Ática, 1982.

SANTOS, Maria Alzira de Souza. Os cus de Judas e Mayombe: da imposição da dor à superação do vazio. Dissertação de Mestrado. – Área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa – Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH/ USP. São Paulo, 2000. Orientador: Prof. Dr. Benjamin Abdala Junior.

SARTRE, Jean-Paul. O que é a Literatura? trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Ática, 1989.
Notas

1 Forma de contratação dos trabalhadores angolanos, repleta de injustiças tanto econômicas, quanto sociais e realizada de forma impositiva. Segundo o Relatório Henrique Galvão (1947), "(...) os indígenas (...) designam por contrato o fato de conseguirem as pessoas para serem fornecidas aos patrões, que solicitam os trabalhadores às autoridades ou à Repartição dos assuntos indígenas. Segundo M. A. Baccega (...) do ponto de vista econômico, essa foi sem dúvida, a mais importante modalidade de trabalho forçado. (BACCEGA, 1985, p.45-46)
MARÇO/2005 - Defesa da Dissertação onde se encontra o texto integral sobre a literatura engajada de Pepetela. Capítulo II.

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