Literatura engajada

Sunday, February 18, 2007


A LITERATURA ENGAJADA DE PEPETELA

MANTOLVANI, Rosangela Manhas
UNESP - Universidade Estadual Paulista/ CAPES
Este trabalho é um resumo do Capítulo II da Dissertação
Guerrilheiros, Heróis, Angolanos: as personagens de Pepetela.
Unesp- Assis/ 2005.

A obra do autor angolano Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, o Pepetela, premiada no exterior e em seu próprio país, veicula idéias libertárias que permitem a seus leitores a apropriação de um ideário político-filosófico fundamental à reflexão dos novos rumos idealizados para a sociedade angolana.

Segundo Inocência Mata, na obra do autor angolano, é inegável a forte presença da ideologia e do caráter pedagógico em alguns de seus romances, como assegurou o próprio autor em entrevista, e como reitera Mata em seu artigo: "Pepetela não enjeita, pois, essa vertente ideológica de sua obra."(MATA, 2002, p. 199).

Segundo nossa perspectiva, a vertente ideológica na obra de Pepetela traduz-se na temática da luta pela libertação do território angolano, presente principalmente nos trabalhos produzidos entre 1969 e 1991, cujo tema principal é a formação da nação angolana.

Esta abordagem tratará da vertente ideológica presente nas obras As aventuras de Ngunga (1972), Mayombe (1971) e A geração da utopia (1992) e da forma como se apresenta essa ideologia na escrita do autor, de forma a realizar algumas reflexões sobre o perfil do autor engajado e o engajamento literário em diferentes momentos históricos, tratando de atender a uma cronologia possível.

Partimos da afirmação de Terry Eagleton de que "Literatura, no sentido que herdamos da palavra, é ideologia. Ela guarda as relações mais estreitas com questões de poder social" (EAGLETON, 2001, p. 30). O que Eagleton procura demonstrar é como a literatura e, especialmente, a teoria da literatura prestou-se, de singulares formas (seja silenciando, seja contrariando), à ideologia vigente em diferentes épocas e, inclusive, atendendo aos interesses de determinados grupos econômicos e/ou políticos.

A ideologia engloba a totalidade das concepções culturais de um determinado grupo social, em uma determinada fase de sua evolução história. Para Marx, é sobre o conjunto das relações de produção que constitui a estrutura econômica da sociedade, ou seja, sobre a base econômica, que se eleva a superestrutura jurídica e política, a que correspondem "certas formas de consciência social determinadas". Marx, no entanto, denuncia a ideologia como falsa consciência, como máscara, como um conjunto de elementos teóricos pseudocientíficos não a conscientizar a verdade histórica, mas a contorná-la por adversa, a fim de justificar privilégios materiais. (MARX, 1977, p. 36-39)

Em toda sociedade coexistem, no mínimo, duas ideologias nitidamente perceptíveis: a da classe dominante, que prima pela conservação da ordem existente com o objetivo de preservar seus privilégios; e a da classe dominada que busca ou luta pela superação dessa ordem e tem o objetivo de implantar uma nova ordem.

Já em 1960, Barthes interrogando sobre o engajamento da literatura, em um artigo dedicado a Kafka, dizia: "A nossa literatura será (...) sempre condenada a esse vai-e-vem esgotante entre o realismo político e a arte pela arte, entre uma moral do engajamento e um purismo estético, entre o compromisso e a assepsia?" (BARTHES, 1964, p.138 apud DENIS, 2002, p. 18), cujo questionamento parece indicar que o engajamento político na arte é extensivo a toda a história da literatura, de forma que sua presença na obra de arte propõe uma relação com os fatos políticos de uma determinada sociedade e seu tempo histórico, em uma relação de oposição ao purismo da "arte pela arte".

O risco que essa visão oferece é considerar-se que na história literária possa ter ocorrido uma alternância entre movimentos veiculadores da "arte pura" e movimentos divulgadores da "arte social" ou engajada, o que, do ângulo que examinamos a questão, não corresponde à melhor perspectiva. Sobre a produção purista que viabiliza a concepção da "arte pela arte", é possível considerar que essa posição aparentemente "a-política" da arte implica também em um posicionamento político que pode favorecer a classe dominante no momento histórico que ela busca representar. Sobre essa questão, Adorno esclarece que:

(...) A obra de arte engajada desencanta o que só pretende estar aí como fetiche, como jogo ocioso daqueles que silenciaram de bom grado a avalanche ameaçadora, como um apolítico sabiamente politizado. Diz-se que desvia da luta dos interesses reais. Que o conflito dos dois grandes blocos não poupa mais ninguém. (...) (ADORNO, 1973, p.51)

Theodor Adorno deixa clara a posição do apolítico tanto quanto sua relação com a obra que procura funcionar como mero objeto de fetiche, uma forma de silenciar sobre as ameaças oferecidas pela sociedade em que se vive e, ainda, de preservar a arte como instituição fechada e isolada dos fatores políticos e sociais.

Flávio Kothe, interpretando as idéias de Adorno sobre os trabalhos de Lukács observa que o segundo não considera o caráter autônomo da obra de arte de forma suficiente, enquanto Adorno talvez o considere em excesso, de forma que a obra se torna conhecimento como totalidade em si mesma, e não por meio de intenções esparsas em momentos isolados dela. Essa conclusão de Adorno contrapõe-se a qualquer engajamento que se apresente de maneira fácil e apressada.

Os debates sobre o engajamento, bem como suas formas de manifestação e o grau de envolvimento dos autores engajados eram o tópico de muitas discussões críticas na primeira metade do século XX, seja entre a direita e a esquerda, ou entre a própria esquerda, cujo objetivo era procurar um caminho em que as questões da sociedade, suas ideologias, bem como seus sistemas econômicos pudessem ser debatidos também por meio da literatura. Esta, por sua vez, estaria funcionando como veículo de conscientização dos seres humanos, revelando-lhes as influências dos sistemas econômicos no quotidiano dos indivíduos.

A literatura engajada no século XX adquiriu uma valoração que transcende a história e surge em função do aparecimento de um espaço literário em que a autonomia e a independência dos escritores eram princípios fundamentais, possibilitando-lhes exercer a liberdade de expressão e articularem-se ideologicamente a quais idéias lhes parecessem mais conveniente. (DENIS, 2002, p. 21)

As décadas de 20 e 30 do século XX encontraram os escritores preocupados com a reocupação de seu papel no terreno da crítica social e política, o que viabilizou uma saída para os homens de letras: o engajamento. Reconheceu-se, a partir de então, o tipo de produtor literário conhecido como "autor engajado", cujo modelo maior se encontra em Jean-Paul Sartre.

É no prefácio de seu Que é a literatura? que Sartre oferece uma visão da situação do escritor diante do grupo social que o lê: a burguesia. Sua posição postula por uma relação entre a produção da obra e seu consumidor, de forma a evidenciar uma necessidade que tem o escritor de se abraçar estreitamente ao seu momento social, uma vez que sua época foi feita para ele e ele foi feito para sua época. Para ele, o escritor tem uma situação em sua época, por isso, cada palavra sua repercute, assim como cada silêncio. Ao tomar partido na singularidade de sua época, percebendo os valores eternos que se encontram imiscuídos no debate social ou político, é que o autor unir-se-á ao eterno.

Segundo Sartre, a intenção do escritor deve ser a de contribuir para que se produzam certas mudanças nas sociedades das quais fazem parte, colocando-se ao lado daqueles que pretendem mudar a condição social do homem e, ainda, a concepção que o homem tem de si mesmo. Dessa forma, os escritos devem posicionar-se em relação aos acontecimentos políticos e sociais que surjam nos diferentes momentos, nas diversas sociedades. Esse posicionamento não implica, necessariamente, um engajamento a um partido político, mas um esforço em extrair uma concepção do homem (baseado nos princípios de Igualdade, Liberdade e Fraternidade) na qual se inspirarão as análises das teses que possam ser debatidas nos veículos literários.

Sob a visão sartreana, tanto os aspectos sociais do indivíduo, no que diz respeito à sua classe, à sua família, à sua condição, quanto as suas características como pessoa, como ser único, devem ser o tópico dos sistemas políticos de forma que estes ofereçam ao homem o que lhes há de mais caro: a liberdade. E é essa liberdade do ser humano, especialmente a do proletariado, que Sartre veicula em seus produtos literários: na revista ou em seus ensaios.

Em Que é a literatura?, o autor trata de definir algumas questões fundamentais, como "O que é escrever?", "Por que escrever?", "Para quem escrever?" , examinando a arte de escrever, de construir com a linguagem escrita os significados do universo. Define que um escritor é engajado quando faz o engajamento passar de si para os outros, da espontaneidade imediata ao plano refletido, sendo um mediador de idéias, por excelência, e seu engajamento é a mediação, definindo-se, então, por um conjunto de atitudes que redundam em suas obras literárias, em uma explícita posição política, inserindo sua produção como um veículo do debate sócio-político. (SARTRE, 1987, p. 66-87) Seu discurso compreende posicionamentos políticos e sociais explícitos que, após a revolução de Outubro, na Rússia, provocariam uma divisão ideológica tanto entre os autores europeus quanto entre os escritores dos demais países do mundo, entre direita e esquerda e, principalmente, entre escritores engajados e não-engajados.

O discurso do escritor engajado pauta-se por uma causa a defender, uma idéia a discutir, um projeto a apresentar, consciências a transformar, de forma a projetar utopias, ou denunciar os desacordos e as injustiças impostas por determinados sistemas econômicos e sociais, aos quais apresenta uma contra-ideologia.

Embora os pressupostos bartheanos da década de 50 tenham oferecido novos olhares sobre a questão do engajamento literário, por meio da contestação formal a Sartre, e o engajamento apareça como uma noção historicamente situada, a reconfiguração do engajamento em cada período da história literária apresenta um perfil singular. Se na Europa da década de 50 do século XX, o engajamento literário parecia obsoleto, o mesmo não se pode dizer a respeito desse compromisso da literatura na África das décadas de 60 a 80 do mesmo século. Segundo Benoît Denis,

O espaço das possibilidades no qual se coloca o escritor não é idêntico em todas as épocas; ele está em constante mutação e não pára de se reconfigurar, dando a cada período da história literária o seu perfil singular. Também a definição do que é literatura engajada se singulariza no mesmo passo que o espaço das possibilidades no qual ele se insere. (DENIS, 2002, p. 27)

Reconfiguradas no espaço angolano, em uma época de absoluta necessidade do envolvimento intelectual nas lutas de libertação, as noções de engajamento e de literatura engajada, ou "de resistência", como ficou conhecida, se pronunciariam em Angola, tendo como veículos as obras de autores engajados, que, associados em movimentos culturais e literários, posteriormente, articularam um movimento revolucionário de independência, oferecendo suas obras à luta pela causa comum.

O engajamento literário pressupõe a existência de três componentes fundamentais indicados por Sartre (1989), e, dessa maneira, tomando como base as reflexões daquele filósofo, chega-se à compreensão que "engajar-se" implica em 1) colocar sua palavra em penhor, em fazer uma escolha; 2) tomar uma direção, integrando-se a uma empreitada e, finalmente, 3) estabelecer uma ação, voluntária e efetiva, que materializa a escolha efetuada de forma voluntária. Assim, "o escritor engajado é aquele que assumiu, explicitamente, uma série de compromissos em relação à coletividade, que ligou-se de alguma forma a ela por uma promessa e que joga nessa partida a sua credibilidade e a sua reputação" (DENIS, 2002, p.31)

Em Angola, muitos escritores iriam assumir, explicitamente, compromissos em relação à sociedade, jogando não apenas suas credibilidades, reputações, mas suas próprias vidas, aliados a promessas de esperança e liberdade na luta contra o colonialismo que durou cerca de cinco séculos. De acordo com M.A. S. Santos, "escrever, desde o início em Angola, se tornou sinônimo de combate - a palavra literária, além de arte foi também forma de militância." E, ainda, "os intelectuais do MPLA fizeram da literatura um objeto de luta política." (SANTOS, 2000, p. 33- 34)

Leonel Cosme, analisando as relações entre a literatura e a Revolução, em Angola, observa que:

" (...) concluir que o pensamento marxista enforma as cúpulas dos dirigentes da revolução angolana - explica muito menos que uma clara opção política à partida do que a exigência cultural nascida da verificação de um método de análise de um problema universal de relações de produção e a luta de classes. (COSME, 1978, p.13) (grifo nosso)

A ênfase de Leonel Cosme recai sobre a clara opção política dos intelectuais angolanos, cuja base ideológica era o marxismo, o que, porém, se justifica pelo problema das relações humanas, entre os colonizadores e os colonizados, de forma que a revolução viabilizasse uma transformação nas relações de classes e nos sistemas de produção, como forma de proporcionar autonomia aos filhos da terra, a liberdade política e econômica e uma sociedade mais justa, em que a escravidão e o "contrato1", fossem abolidos.

Nomes, como os dos escritores Agostinho Neto, Viriato da Cruz, Mário Pinto de Andrade, Luandino Vieira, António Jacinto, António Cardoso, Manuel Lima, etc. iriam compor o panteão do engajamento literário em Angola, como autores militantes da revolução, e que, mesmo afastados de seu curso atual ou futuro político, estarão definitivamente associados à história da época em que os movimentos se formaram, os fins dos anos 50 do século XX, definindo a "literatura angolana", em seu contexto institucional, e, ainda, estético, político e cultural.

No passo desses escritores, outros se engajaram por essa época e suas primeiras produções surgem no final da década de 60 e início da de 70, como é o caso de Pepetela, cuja militância se inicia em 1961, com a adesão ao Partido MPLA, em 1963. Já o trabalho de engajamento político-literário principia em 1969, com a produção de Muana Puó. Suas obras mais militantes, no entanto, são produzidas mais tarde: em 1971, Mayombe; 1972, As aventuras de Ngunga e, posteriormente, em outros tantos trabalhos que se inserem nessa militância e engajamento político-social, cujo percurso parece não ter um limite preciso ou ponto de chegada. Sua principal arma, o discurso, é disponibilizada em função de uma sociedade que se quer progressista, igualitária, despida de preconceitos e processos que impeçam sua integração internacional, preservando suas raízes culturais, e construindo uma identidade nacional que se pretende livre de racismos, tribalismos e regionalismos.

Compreendemos discurso como o conjunto de pressupostos e subentendidos implícitos ao nível significativo do texto. E os pressupostos e subentendidos das obras pepetelianas indicam um comprometimento com a causa política e a luta pela libertação do país, tanto no período da independência, que se consolida em 11 de novembro de 1975, quanto no período da guerra civil, durante os anos que se seguiram, até a morte de Jonas Savimbi (em 2002), revolucionário e líder do partido de oposição, a UNITA.

Ora, se o objetivo da luta de libertação de Angola era justamente a liberdade política, como poderiam as narrativas As aventuras de Ngunga e Mayombe privarem-se do discurso sobre a política? Em função desse tipo de discurso que, em muitos episódios, é predominante nas falas de algumas personagens, concluímos que os seres ficcionais engajados de Pepetela são constituídos de forma a integrarem-se "na espinha dorsal [do] romance, (...) a Estória" (FORSTER: 1969:21), ressaltando em suas falas tanto a faceta da política quanto a ideologia que a precede, oferecendo coerência à obra.

Irwing Howe, estudando as relações entre a política e a literatura no romance concluiu que o romance político se constitui como um texto "no qual assumimos serem dominantes as idéias ou o milieu político, um romance que permita essa pressuposição sem que com isso sofra qualquer distorção radical e que, em decorrência, propicie a possibilidade de algum lucro analítico." (HOWE, 1998, p. 5) No estudo, detém-se, ainda, a especificar a apresentação das personagens de um romance político, indicando como características principais que a idéia de sociedade penetra na consciência das personagens em todos os seus aspectos profundamente problemáticos, e refletem-se em seus comportamentos, estando estas conscientes de suas relações e lealdades políticas, bem como de suas identificações ideológicas. Geralmente, essas personagens aparecem organizadas ou arregimentadas em segmentos fortificados dentro da sociedade, como grupos ou classes, e fazem isso em nome de uma esperança, de uma ideologia.

Para que um romance político possa atender a sua forma "ideal", ele deve ser uma obra de tensões internas, contendo tanto a representação dos comportamentos e sentimentos da humanidade quanto a absorção, em suas linhas internas, dos fluxos da ideologia moderna. A dialética engenhosa do romance político prevê a capacidade de manipular várias idéias, como em Mayombe, ou em A geração da utopia, apresentá-las em suas relações hostis, porém, interdependentes, apesar de diversificadas, e, ainda, a instigar a compreensão dos modos pelos quais essas idéias podem ser representadas sem que pareçam as de um programa político.

As idéias e ideologias ganham vida em Pepetela, dotando as personagens de capacidades e habilidades que as conduzem a ações e sacrifícios apaixonados em nome da ideologia e da liberdade, impulsionando-as ao oferecimento de suas vidas, mas criando a ilusão no leitor de que possuem um movimento independente, autônomo, que não atendem aos desejos de uma força maior, parecendo mesmo personagens ativas. Embora muitas personagens pepetelianas sejam movidas pela ideologia marxista, abraçada pelos intelectuais do MPLA como suporte para a luta contra o colonialismo, outras são mobilizadas por contra-ideologias, que se prestam a estabelecer relações dialéticas nas narrativas, propiciando o dialogismo e o aparecimento de tensões no discurso.

Em entrevista a Michel Laban (em 1988), Pepetela faz questão de enfatizar o seu engajamento político nas obras que produziu entre 1969 e anos seguintes, que compreendem o período da revolução angolana e seus desdobramentos. Diz ele:

__ Há uma vivência à saída de Portugal, passagem por França e fixação em Argélia, por um lado. Há os estudos de sociologia. Há, fundamentalmente, um engajamento político muito maior - uma atividade muito mais intensa no aspecto político - e há também dois ou três livros no meio..., dos quais dois romances que desapareceram. (...) (LABAN, s/d, p. 777)

O engajamento político a que se refere Pepetela encontra-se associado a seu ingresso, em 1963, para o MPLA, quando inaugura o Centro de Estudos Angolanos, em Argel, posteriormente transferido para Brazzaville, e, ainda, ao período que passou nas Frentes Guerrilheiras, em Cabinda, onde nasceu a obra Mayombe, e depois, na Frente Leste.

Político, o espaço de Mayombe é povoado de seres cujos projetos, ações e comportamentos são delineados por uma ideologia que os configura como personagens da política de resistência ao colonialismo, cujas infâncias infelizes se descortinam e se associam à ação revolucionária, como uma forma de garantir a esperança de uma maturidade e velhice mais livres e felizes, senão para si mesmos, para seus descendentes. A política dos heróis de Mayombe concentra-se na discussão dos conflitos que constituem problemas para o ideal revolucionário e a superação das diferenças grupais, surgindo como luz a iluminar as consciências revolucionárias que se formam nas escolas das frentes guerrilheiras, pelas ações políticas do Comissário ou pelas ações e idéias político-filosóficas do herói e ideólogo Sem Medo, comandante do MPLA na narrativa.

A faceta política da obra As aventuras de Ngunga concentra-se na temática dos valores morais do guerrilheiro ideal, o homem novo, que surge a partir da idéia de coragem e enfrentamento das falhas humanas e sua superação, na inclusão do herói como membro de um movimento revolucionário em prol da independência do país, no seu engajamento no MPLA, em cujo seio encontraria o objeto de sua busca, no posicionamento revolucionário, na aprendizagem dos valores marxistas, no acesso aos instrumentos e tecnologias do colonizador. Esses elementos o levariam à compreensão do projeto de nação a ser construída no território de Angola, após a incansável busca desse órfão, e suas inúmeras decepções pelas mortes dos membros da família, dos amigos e da impossibilidade do amor de Uassamba.

Na obra A geração da utopia, que reorganiza uma discussão sobre os principais momentos vividos por um grupo de jovens estudantes e seus percursos pelos diferentes períodos da formação da nação angolana, a política é o tema central dos debates, incluindo personagens que se associaram aos dois principais movimentos político-revolucionários que lutaram pela independência de Angola, vistos sob o olhar de um narrador engajado a um deles, o MPLA. No entanto, o mesmo narrador oferece voz aos elementos que antagonizaram com os futuros donos do poder, por meio da personagem Elias, focalizada pelo viés satírico. Assim, também, configura a personagem defensora dos ideais regionalistas, Vítor, no episódio "A Chana", como forma de oferecer voz a todas as visões ideológicas que percorriam o território naqueles períodos decisivos para o destino do povo angolano. No texto, os novos ocupantes do poder representando o MPLA, agora partido político, não escapam a uma crítica ácida pela forma como conduziram os rumos da nação. Sob esse aspecto, as falhas do sistema sócio-econômico-político não passam despercebidas à análise rigorosa de Aníbal, um ex-Comandante, herói do MPLA.

O desencanto com a política e o marxismo se revelam nos entreditos do discurso, por meio de pressupostos e subentendidos, ou mesmo explicitamente, de forma a configurar um herói desarmado e decepcionado com os rumos que o país tomou nos últimos anos, vitimado pelas desigualdades sociais, pelos regionalismos e os processos de corrupção no meio político, empresarial e religioso. Em razão desses elementos, é possível afirmar que A geração da utopia se consolida como uma renúncia às formas da política que se organizaram no território angolano após o ano de 1991.

Por estes e outros aspectos, consideramos que a obra de Pepetela, estudada neste trabalho, consolida-se como o que se convém chamar de "novo romance político", um romance nascido em terras onde a literatura exerceu e continua a exercer uma função essencial na luta pela emancipação das massas, cujas principais idéias veiculadas tratam de questões políticas, que denunciam por meio do particular, o panorama político internacional e que, ainda, prestou-se à conscientização de uma determinada categoria de homens: os guerrilheiros, que aprendiam a ler e escrever nas bases militares, recebendo formação política de cunho marxista-leninista, aprimorando suas capacidades e habilidades para a compreensão das ciências e das relações do mundo dito "civilizado". Social e socializante, a literatura de Pepetela prestou-se a um papel humano de libertação e conscientização que engloba os principais pressupostos de engajamento ditados por Sartre em seus escritos.

BIBLIOGRAFIA

ABDALA JR., Benjamin. Literatura, História e política. São Paulo: Ática, 1989.

ADORNO, Theodor. Notas de literatura. Trad. de A. Galeão e I. A. Silva. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973.

BARTHES, Roland. O grau zero da escritura. São Paulo, Cultrix, 1971.

COSME, Leonel. Literatura e Revolução. Lisboa: África, 1978.

DENIS, Benoît. Literatura e engajamento de Pascal a Sartre. Trad. Luiz D. A Roncari. Bauru - SP: Edusc, 2002.

EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. Trad. Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

HOWE, Irwing. A política e o romance. trad. Margarida Goldsztajn. São Paulo: Perspectiva, 1998. (212 p)

KOTHE, Flávio René. Benjamin & Adorno: confrontos. São Paulo: Ática, 1978.

MARX, Karl. A ideologia alemã. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

MATA, Inocência. "Pepetela: a releitura da história entre gestos de reconstrução". In: CHAVES, Rita; MACEDO, Tania (org.). Portanto...Pepetela. Luanda: Livraria Chá de Caxinde, 2002, (195- 212).

PEPETELA. As aventuras de Ngunga. São Paulo: Ática, 1981 .

__________. A geração da utopia. Porto Alegre: Nova Fronteira, 2000.

__________. Mayombe. São Paulo: Ática, 1982.

SANTOS, Maria Alzira de Souza. Os cus de Judas e Mayombe: da imposição da dor à superação do vazio. Dissertação de Mestrado. – Área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa – Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH/ USP. São Paulo, 2000. Orientador: Prof. Dr. Benjamin Abdala Junior.

SARTRE, Jean-Paul. O que é a Literatura? trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Ática, 1989.
Notas

1 Forma de contratação dos trabalhadores angolanos, repleta de injustiças tanto econômicas, quanto sociais e realizada de forma impositiva. Segundo o Relatório Henrique Galvão (1947), "(...) os indígenas (...) designam por contrato o fato de conseguirem as pessoas para serem fornecidas aos patrões, que solicitam os trabalhadores às autoridades ou à Repartição dos assuntos indígenas. Segundo M. A. Baccega (...) do ponto de vista econômico, essa foi sem dúvida, a mais importante modalidade de trabalho forçado. (BACCEGA, 1985, p.45-46)
MARÇO/2005 - Defesa da Dissertação onde se encontra o texto integral sobre a literatura engajada de Pepetela. Capítulo II.

Saturday, February 17, 2007


A TRÍADE DA CORRUPÇÃO EM A GERAÇÃO DA UTOPIA, DE PEPETELA

Rosângela Manhas MANTOLVANI (UNESP - CAPES)
Este trabalho foi apresentado em Congresso - Cellip 2005

Resumo
Este trabalho trata de desvendar a configuração de três dos personagens do romance A geração da utopia (1992), do escritor angolano Pepetela (Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos). Produzida entre 1991 e 1992, A geração da utopia busca reconstruir o percurso de um grupo de jovens estudantes universitários angolanos por um período de aproximadamente três décadas. A narrativa inicia-se em 1961 e estende-se até o intervalo temporal a partir de 1991, oferecendo um desfecho em aberto, permitindo a reflexão sobre sua possível conclusão. Organizada em quatro episódios, a obra é povoada por personagens que atravessam seus cenários em diferentes segmentos cronológicos, de singulares formas. Os percursos de Vítor, Malongo e Elias, iniciados em Lisboa, insinuados nas anharas, em pleno coração de Angola, e resumidos em Luanda, buscam esclarecer parcialmente os descaminhos percorridos pelos homens. São personagens construídas para criticar determinadas posições, adotadas por certos grupos sociais, contrárias à ideologia da revolução, que se instalaram no território angolano logo após a luta de libertação do país. A base teórica encontra-se sobre os estudos de Bakthin, Candido, Genette, Hamón, e Segolin, entre outros teóricos utilizados para concretizar a análise dessas personagens.

2. Antagonistas e Anti-heróis

A geração da utopia, de Pepetela, produzida entre 1991 e 1992, e editada no ano de sua conclusão, recupera a história de Angola a partir de quatro episódios histórico-políticos: o primeiro, "A Casa" se inicia no ano de 1961, em Lisboa, envolvendo o percurso de alguns estudantes angolanos e suas movimentações políticas em torno à Casa dos Estudantes do Império (CEI); o segundo relata fatos de um momento anterior à independência, no ano de 1972, inscritos no episódio "A Chana", ocorridos na região do Moxico, em Angola; mas que remetem a outras ocorrências no território angolano; o terceiro, "O Polvo", procura recuperar os acontecimentos em torno do ano de 1982, após a independência de Angola e, finalmente, no quarto, "O Templo", trata de ironizar os rumos que o país seguiu após 1991, de acordo com a visão do autor.
Nessa narrativa, Pepetela trata de construir antagonistas, cujas características principais concentram-se na dispersão de interesses que se confrontam com as idéias veiculadas pelo herói e seu grupo de amigos, configurando-se, principalmente por apresentarem características próprias dos anti-heróis. De acordo com Heloísa C. Milton, as picardias dessas personagens são específicas, pois eles:

(...) não mantêm compromisso de nenhuma natureza, a não ser com a sua própria sorte (...) são livres e desgarrados, na medida em que são desprovidos de amarras sociais; são itinerantes (...); enfrentam as adversidades com os recursos que a imaginação lhes oferece, sejam eles quais forem (...); astutos, usam da inteligência em benefício próprio, procurando tirar vantagens das situações que vivem; são avessos ao trabalho, mas desejosos da posse do dinheiro; ao final de suas histórias, de alguma forma estão degradados e diante de um impasse existencial, (...) (MILTON, 1992, p. 75)

As características enumeradas pela pesquisadora se encontram presentes, principalmente, na configuração das personagens Elias e Malongo. Outras, porém, enumeradas por Milton não se fazem presentes, a exemplo da sucessão ininterrupta de aventuras circunstanciais, ou de se debaterem com antagonistas, uma vez que suas idéias é que funcionam como forças antagônicas às do herói da narrativa. Elias, Malongo e, ainda, Vítor são também veículos de crítica das injustiças sociais, uma característica indicada pela pesquisadora, porém, ocupando a instância actancial dos antagonistas. Suas configurações apresentam, também, características do malandro, pois, segundo Milton, "o malandro é o ser instalado fora da ordem que regula as instituições e os mecanismos sociais; é aquele que realiza a anarquia, a carnavalização, de ordem oficial, em benefício da manutenção de sua integridade no plano oposto, no da desordem. (Idem, p.76)

O anti-herói pepeteliano, contrariamente aos agitadores, subversivos, ou bodes expiatórios, sugeridos por Brombert (2002, p.14), nesta obra, assume a forma de empresário, político ou religioso, cuja característica principal é manter a aparência de seguidor das leis, de forma a sentir-se protegido pela justiça ou pelas tradições de algumas sociedades angolanas.
Os antagonistas da obra abordada se organizam como elementos de críticas, por isso constituem-se como personagens focalizadas de forma negativa por outras vozes que integram as narrativas. E, quando isso não ocorre, as ações do herói ou de outras personagens, prestam-se a desfazer a imagem positiva. Opositores do projeto de libertação nacional, por suas idéias, práticas sociais ou políticas, os antagonistas ou o anti-herói pepetelianos são sujeitos que se encontram à margem das práticas dos ideológos, funcionando como barreiras às concretizações dos utópicos ideais revolucionários do movimento de libertação e reconstrução nacional.

3. A tríade da corrupção
Na obra A geração da utopia, há três personagens cujo percurso se estabelece a partir do episódio "A Casa", iniciado em Lisboa, em que são estudantes como os demais, porém apresentam, já, alguns atributos como falhas de caráter e atitudes negativas com relação à participação social, apresentado-se desvinculados das lutas políticas no ano de 196l. Trata-se das personagens: Vítor, que mais tarde receberia o cognome Mundial; Malongo, jogador do Benfica e noivo de Sara; e Elias, estudante protestante, voltado aos estudos teológicos e metafísicos.
Vítor e Malongo, participam da fuga dos integrantes da Casa dos Estudantes do Império, em 1961. O último, Elias, permanece em Portugal sob a proteção de uma Igreja Evangélica que sustenta seus estudos. Elias, como os outros, não trabalha. Já por essa época, Vítor Ramos e Malongo eram amigos e dividiam o mesmo quarto. Vítor compartilha com o amigo o segredo da amante francesa e silencia a Sara a traição do noivo. No episódio "O Templo", é Malongo quem acoberta Vítor em suas escapadelas noturnas, e ajudando a embebedar sua mulher, Luzia. Dados a traições, e unidos por este atributo e outros, partilham, ainda, o fato de mentirem e dissimularem, quando sentem que podem ser prejudicados, como Vítor com relação aos pais e Malongo com relação a Sara e à francesa Denise. Dissimulados e aliados, as personagens continuarão sua relação de amizade no episódio "O Templo", formando com Elias uma tríade em que o poder político, o econômico e o religioso se irmanam nas artes da corrupção.

3.1. Malongo: do futebol ao empresariado
É possível afirmar que no episódio "A Casa" são as focalizações e o olhar do narrador que apresentam Malongo como um anti-herói, ou seja, como alguém que se preocupa apenas com seus projetos individuais, apesar do momento por que passa seu país e seu povo. O narrador, no entanto, atribui a Malongo uma certa simpatia, principalmente quando descreve seus caracteres físicos, de forma indireta (ATAÍDE, 1973, p.44) e sua maneira de se comportar. Dotado de características e comportamentos que fazem lembrar aspectos do malandro brasileiro, Malongo é descrito pelo narrador com certa afinidade, porém com uma boa dose de ironia, o que lhe confere conceito negativo.
Oriundo do Malanje, violeiro, havia servido o exército, e fora dispensado como recruta. Sempre em dúvida com relação ao seu desempenho atlético na Equipe do Benfica e, exatamente no momento em que a luta contra o colonialismo em Angola se define, tem esperanças de ser escalado para o grupo titular. Impedido por sua indisciplina, inveja a situação econômica e social de Arsênio, seu amigo jogador. Narcisista, ele sonha com seu nome divulgado nos jornais da metrópole e imagina as manchetes " no título dum jornal desportivo, MALONGO DERROTOU O SPORTING ou COM MALONGO O BENFICA É OUTRO. Encostou-se mais no assento do carro, vendo os títulos em letras garrafais a desfilar." (PEPETELA, 2000, p.27) Mas a falta de persistência o impede de galgar não apenas os altos, mas quaisquer degraus. Costumeiro das orgias do Marítimo, ele freqüentava a farra depois dos jogos de sábados, nunca perdia um baile da Casa e dançava até de manhã. Embora não abusasse da cerveja, nunca dispensava umas e outras doses. Noivo de Sara, e amante de Denise, ele vive um quotidiano agitado. Afeito às tradições de algumas sociedades tribais poligâmicas, acreditava que a maturidade de Sara deveria suportar seu temperamento volúvel. Por outro lado, desobrigava-se de seus deveres de noivo e, futuramente, de seu papel de pai.
Avesso a movimentos políticos, assim como Vítor, Malongo não participa da passeata de Primeiro de Maio contra o regime salazarista: "não me meto nessas coisas" (PEPETELA,2000, p.32) Encantado por Denise, ele se aproveita da situação da francesa, uma militante do FLN argelino para "subir na consideração dos companheiros", que passaram a tratá-lo com mais deferência após tê-la convidado para ir à CEI falar sobre a luta na Argélia. Indigna-se, porém, quando Sara lhe esconde que hospedou um amigo: Aníbal. Ou seja, Malongo pressupõe que entre homens e mulheres haja uma relação desigual, na qual apenas as mulheres devam prestar contas de seus atos, enquanto os homens devam permanecer isentos de justificativas. Amedrontado pelas inúmeras convocações para o Exército colonial, foge para a França para salvar a própria pele e seu bom humor desaparece.
Na França, Malongo abandona Sara e a filha Judite e, depois de algum tempo, segue para a Alemanha atrás de uma outra mulher. A partir de então, vive de pequenos expedientes, como tocar em bares noturnos e valer-se de favores de mulheres endinheiradas, permanecendo na Europa até que a situação de Angola se estabilize. Ao retornar, instala-se como contrabandista de uísque e outros produtos, obtendo imensas vantagens comerciais. Dono de um grande capital, Malongo leva uma vida de colonialista, tendo, inclusive, serviçais negros como ele, que trata como se fossem escravos.
Construído como crítica aos apolíticos e oportunistas durante toda a narrativa, Malongo encarna o modelo de bon vivant a partir de seu retorno a Angola (episódios "O Polvo" e "O Templo"), e se aproveita da falta de controle das instituições do país para praticar irregularidades comerciais, obtendo lucros estupendos.
Envolvido com as altas esferas sociais, e irmanado com um político desonesto, Vítor Ramos, agora ministro de Estado, a personagem de Malongo é construída como forte crítica àqueles que retornaram ao país para usufruir sem pagar impostos, distribuir o luxo e o supérfluo, desviando verbas e valores que poderiam ser utilizados em favor do povo. Sua construção funciona, ainda, como crítica aos comportamentos da nova burguesia angolana que vive à sombra de alguns elementos do grupo dominante da esfera estatal, superando esse mesmo grupo não pelo poder político, mas pelo poder financeiro.
A voz de Malongo associada à do narrador, oferece um panorama dos grupos envolvidos nos negócios de corrupção no estado angolano, beneficiários nos negócios com empresas internacionais, exportadoras de produtos ou de tecnologias, favorecidas nas concorrências das compras oficiais, oferecendo a ele, o intermediário, e seu comparsa, Vítor Ramos, associado a outros integrantes do meio político, as vantagens pessoais que os fazem "nadar no meio dos tubarões", repartindo suas comissões, dinheiro do Estado que deveria beneficiar o público. "Ele [Malongo] agora é que ia escolher os produtos e as tecnologias que queria introduzir no país." (id. ibid., p. 309) A escrita de Pepetela sugere que os novos rumos econômicos do país encontram-se em mãos de "malongos e vítors", personagens de um cenário econômico-político incapaz de combater o individualismo, a corrupção, e o desvio de recursos públicos.
O ápice de sua trajetória como malandro, agora internacional, ocorre no episódio "O Templo", quando acata as propostas de Elias, prevendo lucros interessantes na construção da Igreja de Dominus e, finalmente, na narrativa, incorpora-se ao grupo popular que freqüenta o cinema transformado em Igreja, dançando e cantando e repetindo a ladainha "Dominus falou", integrado à ação carnavalesca que se organiza nos momentos finais da obra.

3.2.Vítor: da militância à corrupção estatal
Natural do Huambo, descendente de famílias dos chefes locais por parte da mãe, e de pai oriundo do Golundo, no Norte, descendia, também, de família de escravocratas. Por ser negro, sofria o racismo exacerbado pela propaganda política em Portugal. Avesso a idéias políticas, recusa-se a participar de passeatas contra o regime de Salazar, pois para ele: "isso é um problema dos portugueses, não nosso". Fora no Huambo que conhecera Elias.
Visto pelo narrador de uma forma que o deprecia, Vítor aparece como mau estudante, pois "ia chumbar mais uma vez, mas os estudos ou a carreira apareciam-lhe tão distantes, tão secundários, que já nem remorsos sentia por gastar inutilmente o dinheiro do pai, fazendo sacrifícios para lhe enviar a mensalidade." (PEPETELA, 2000, p. 103), característica que lembra pícaros como Pablos, que inconseqüente e negligente, desvalorizam o esforço dos que os sustentam e a necessidade de educação.
No episódio "A Casa", Vítor mostra-se inicialmente desinteressado de qualquer atividade política, porém, no final do episódio, inicia leituras de obras marxistas, o que o faz confrontar as idéias de Elias. Defensor das idéias do MPLA, Vítor discute idéias políticas sobre os rumos do país e, principalmente, sobre as formas de conquista da liberdade do território nacional. Seu idealismo político o faz participar da fuga da Casa, juntamente com Sara e Malongo.
Vítor integra-se como voluntário na Luta de libertação, e termina por incorporar-se à mesma Seção Guerrilheira de Aníbal, na época, comandante. Chamado pela direção do Movimento à Zâmbia, partira do Bié há um mês em direção àquele país para participar de uma reunião política, com dez homens, quando foram atacados em pleno dia, caindo na cilada do inimigo, da qual covardemente fugiu, perdendo-se no meio da mata, no episódio "A Chana".
Ao atravessar as matas do Moxico, Vítor vive uma situação sui generis, em que os valores morais são soterrados pelas emoções e pelas necessidades físicas. Delirante, inicia um processo mental de retomada de fatos passados. Suas reminiscências, no entanto, o denunciam, revelando o caráter dúbio de Vítor que, exausto, esfomeado, friorento e sedento, caminha em círculos, quando percebe encontrar-se perto de um posto dos colonialistas. Só e sujeito às forças da natureza, as quais desconhece e não consegue dominar, Vítor inicia um monólogo que revela seu lado interior de uma forma depreciativa:

Como pode um homem suportar a fome, o cansaço, a falta de sono, o frio, o medo? De que é feito um homem? Que mais podem exigir de mim, não sou super. Porquê evitar o Posto, se ao menos ali acabava tudo? Fome, fome, preocupação número um desta guerra, sonho e pesadelo do guerrilheiro, tema central de conversa.(...)
(...) A verdadeira luta de classes é a contradição que opõe os que passam o dia a pensar na barriga para encher e os que, se nela pensam, é apenas para a esvaziar. E não me venham com teorias, esta é a única verdade.
(PEPETELA, 2000, P. 187)

Desprezando as teorias socialistas, e enfatizando as necessidades biológicas, Vítor pensa em se entregar ao inimigo, como muitos fizeram, traindo o Movimento. No entanto, uma situação tão dúbia quanto seu caráter se apresenta, e para sua sorte, Vítor não é percebido pelos colonialistas, fato que o heroiciza aos olhos confusos de um grupo de combatentes do MPLA que se encontrava nas matas. Seu aparente feito o eleva à condição de herói, um falso herói que, de forma oportunista, reivindica para si mesmo uma glória que não possui.
O perfil de Vítor, no episódio "A Chana", é construído pelo narrador, em oposição à figura do Sábio que funciona como ponto de referência às ações do Mundial, e, ainda, como contraponto ao seu comportamento. A relação entre Vítor e o herói é de oposição, pois os seus diálogos e monólogos interiores indicam uma posição que privilegia a ascensão dos homens aos cargos políticos do partido não por suas formações ou capacidades de liderança, mas por suas origens. Dialética, a relação entre o herói e o antagonista concentra os principais pontos da discussão política que dominou o país durante o período de lutas pela independência, arrastando-se para os ideais libertadores do pós-independência, não apresentando conclusões, antes, o texto se oferece à reflexão, permitindo as inferências do leitor.
O jogo político de Vítor se concentra em manter relações com o grupo que apresenta melhores condições para tomar as rédeas do país. É a voz de Aníbal que denuncia as falcatruas e traições articuladas por Vítor para ascender ao cargo de Ministro:

(...) Aqui para nós, nunca entendi como o Mundial, no derradeiro segundo se desviou da Revolta do Leste. Em 1972, quando partiu para a fronteira, já estava todo feito com eles. Não enganava ninguém. Mas cheirou o vento, ou teve um sonho anunciador. (...) Foi mantendo certo distanciamento dos dois campos, estando com um pé escondido em cada um. No momento decisivo da opção, cortou as ligações com os revoltosos. E foi naturalmente subindo na organização. Teve enorme habilidade, tenho de reconhecer. O chamado saldo do gato que cai sempre de pé. (PEPETELA, 2000, P. 239)

A fala de Aníbal sobre esse episódio vivido por Vítor, refere-se a fatos históricos da cisão do MPLA, episódios da revolução angolana, dos quais ele teria saído vitorioso, ao fazer um jogo duplo, segundo Mukindo, um ex-guerrilheiro, mutilado de guerra. Vítor prometera aos homens do Leste que todos iriam ocupar cargos políticos, desaparecendo posteriormente, e unindo-se ao grupo do Norte.
Instalado em Luanda, logo após a Independência, Vítor abandona a mulher e os dois filhos que trouxera do mato. Ladino e dissimulado, ele vê seus objetivos alcançados em seguida, quando é nomeado Ministro pelo MPLA, tornando-se amante e, posteriormente, marido, de sua secretária, Luzia. Desacreditando que a situação política mantenha-se estável, trata de manter negócios escusos, como cabarés e boates noturnas, adquiridos à custa de propinas e desvios de verbas públicas. O encontro com Elias o fará voltar os olhos para um outro filão financeiro, associado à crença das pessoas e à falta de esperança da população em relação à melhoria das condições de vida.
Homem de poucas palavras, Vítor propõe-se a ouvir as sugestões de Elias e reflete sobre os benefícios que o apoio político que uma "boa igreja" poderia lhe oferecer, de forma que se projetasse politicamente, sem correr os riscos de prejuízos nas próximas eleições, ou a fatalidade de uma queda de seu grupo político. Em discurso direto diz que:

__ Eu? Porra! Nestes tempos de mudança não se sabe para quê? Já me acusam e aos colegas do Governo de corrupção, de repressão, de tudo e de nada. Todos os dias aparecem partidos de oposição a querer escarafunchar na merda e eu vou meter-me numa igreja electrônica? Preciso é do apoio duma boa Igreja prestigiada, católica ou protestante, mas com peso. (PEPETELA, 2000, p.342)

Impressionado com o coroamento simbólico de Elias, condutor de multidões e promotor de futuros apoios políticos essenciais à sobrevivência de homens como ele, Vítor, no cinema improvisado para o culto, era um dos únicos que mantinham o sangue frio, sem se deixar impressionar pelo êxtase coletivo. Encolhido no seu canto, o ministro apreciava a imensa e alegre procissão que se alastrava pela igreja e por toda imediação, invadindo as ruas e praças e cantando "Dominus falou", um sinal da vitória da articulação da tríade da corrupção.

3.3. Elias: o profeta da alienação
Natural do Bié, Elias estudou no Lubango, indo depois cursar universidade na metrópole. Residia fora de Lisboa, e sofria restrições em Portugal, onde a religião oficial era a católica. Tinha uma fala calma, sempre macia, era míope, por isso usava espessos óculos, tinha cara de sacerdote, lia livros proibidos do antilhano Franz Fanon, em francês. Dominava também o inglês. Por essa época, justificava a violência da UPA, com discursos que distorciam as teorias de Fanon e Freud. Para Elias: "(...) O colonizado só pode adquirir uma personalidade de homem livre se exercer a violência. Qualquer violência se justifica assim. Como o filho que mata o pai, pelo menos em sonhos, para se tornar adulto." (PEPETELA, 2000, p.95)
Elias era umbundo e sua simpatia pela UPA contradizia sua origem, uma vez que a UPA "massacrava os bailundos, como eram chamados os contratados do Planalto Central que iam trabalhar no Norte". Suas idéias contrapõem-se às de Vítor que, há algum tempo, acreditava que havia teorias melhores que aquela, como a que diz que "todos os angolanos devem lutar juntos contra o colonialismo, sem massacres de civis, sejam eles quem forem. E que congregue até mesmo os mulatos" (PEPETELA, 2000, p.96): teorias do MPLA.
Representante dos defensores das idéias do movimento de libertação denominado UPA, Elias se contrapõe aos projetos e idéias políticas preconizadas pelo MPLA, cuja versão ideológica se encontra nas palavras de Vítor. Filho de camponês, Elias deixou a Europa, seguindo para os Estados Unidos em 1961, onde estudou filosofia, desaparecendo em seguida. Integrou a UPA e, mais tarde a FNLA. Lutou na guerra civil ao lado dos dissidentes da UPA, então reunidos com a UNITA, afastando-se mais tarde para Argel e retornando a Angola "sem pretensões políticas no que diz respeito ao Estado". Seu gesto político, no entanto, concentra-se em engendrar idéias que, de alguma maneira, efetuam alguma forma de controle sobre as massas, o discurso religioso.
Fundador de uma nova seita, que engloba práticas de diferentes religiões, o propósito de Elias é mobilizar recursos para construir um Templo: A Igreja da Esperança e da Alegria de Dominus. Esta, eclética, procuraria atender aos fiéis de forma a transformá-los em pessoas felizes, mesmo vivendo em meio à imensa miséria e sérios problemas econômicos, políticos e sociais. Sua aparente apoliticidade, no entanto, o faz mais político que todos os outros.
A política de Elias se manifesta por meio do controle que exerce sobre a massa de fiéis e por sua associação com a figura que representa a faceta corrupta do Estado, o ministro Vítor, e ainda com a figura que personifica o empresariado corrupto: Malongo. Investido de poder acadêmico para fazer, considerada sua formação universitária, Elias encarna a figura do profeta, a figura do carismático, capaz de levar o povo ao êxtase e à felicidade em seus cultos religiosos.
Construído pelo viés irônico, o narrador esmera-se em rebaixar a figura de Elias, por meio de suas próprias falas nas cenas, muitas vezes repletas de metáforas. Sua voz parece soar como apocalíptica, pois advém do fundo da garganta: baixa, calma e potente, extremamente persuasiva. "Elias baixou modestamente os olhos. Ficou alguns instantes em silêncio, (...) Falou com a voz cavernosa que devia ter aprendido com algum ventríloquo de circo. 'Dominus escolheu-me para se revelar'. (...) (PEPETELA, 2000, p. 332)
De volta a Angola, agora, imbuído de aparentes sentimentos religiosos, Elias articula uma nova seita. Criador de diferentes fisionomias, transformado em um ator profissional, cujo semblante e voz poderiam modificar-se rapidamente, de acordo com a ocasião, Elias tratará de estruturar uma Igreja popular, que agrade a todos.
O discurso de Elias propõe palavras de estímulo e esperança e alegria: pontos fundamentais oferecidos por essa igreja, ou seja, um "pacote de auto-estima" que comungue a ausência de pecado, um deus bondoso que tudo perdoa, integrando a cura de doenças, que seriam combatidas na "profundidade do ser", interferindo nos "fluxos de energia", "no metabolismo essencial e nas trocas com a natureza" (PEPETELA, 2000, p.331)
Célia R. Marinângelo (2001, p. 99), ao analisar a abordagem crítica da religião em A geração da utopia, observa que "(...) a instituição religiosa aparece de forma irônica, demonstrando a capacidade de manipulação que as seitas podem exercer sobre um povo sofrido como o angolano. A formação de uma nova igreja é descrita com clareza, demonstrando seu cunho mercantilista. (...)"
A ironia de Malongo, que não acredita nas boas intenções de Elias, não tarda a esclarecer os fatos de forma a denunciar as verdadeiras intenções de Elias: obter um negócio lucrativo em Luanda, para onde confluem pessoas de toda parte do país, e que possui uma parte da população periférica sujeita a esse tipo de influência sutil. Ladino, Malongo percebe as estratégias mercantilistas de Elias.
Visto por Malongo como um show que atrai os populares, o culto de Elias se esclarece pouco a pouco, enquanto o tom do texto torna-se mais irônico e a encenação de Elias torna-se mais convincente, cada vez mais teatral. Sua máscara vai desaparecendo aos olhos de Vítor e Malongo, que aceitam unir-se nesse empreendimento, com o objetivo de garantir um futuro econômico que fatalmente não mantêm sob controle. Para Elias, Deus é uma incessante recriação dos homens. "(...) como mensageiro de Dominus, o vou recriando. Ele me criou, e eu o recrio" (PEPETELA, 2000, p. 332). Ele explica a necessidade dos ritmos no contexto do culto, como forma de conduzir as massas de fiéis ao êxtase:

(...) A litania das cadências ancestrais provoca um efeito próximo da hipnose, o que facilita a compreensão das verdades supremas e o fortalecimento do poder da mão. Todas as grandes religiões perceberam isso, daí a importância dos cânticos e certos movimentos repetitivos do corpo para levar os fiéis ao êxtase. Em África, o ritmo tem que ser outro, mais rápido, que actue sobre os batimentos do coração, acelerando-o (...) (PEPETELA, 2000, p. 335)

O texto funciona como alegoria e paródia da hipnose geral da população, a qual prefere não compreender ou observar os desmandos políticos e econômicos, bem como o descaso com a população (exposto nos discursos de Aníbal no episódio "O polvo") voltando-se ao êxtase das pequenas alegrias. O texto de Pepetela ironiza o momento de inércia e de pseudofelicidade que envolve alguns grupos populares em Luanda, capazes de voltar-se a outros aspectos da vida, que não à crítica da realidade social imediata, volverem os olhos aos shows iluminados e sonoros, em detrimento das utopias que viabilizavam outras formas de relações sócio-políticas-econômicas. Incapazes de rediscutir o país, os que antes participavam dos processos de emancipação política, como Vítor, agora se voltam exclusivamente aos interesses individuais. É esse o tom do discurso do narrador, que, aparentemente aderindo à trama da tríade da corrupção, formada por Vítor, Elias e Malongo, trabalha a narrativa em terceira pessoa, de forma a aproximar-se do grupo que divide em partes a boa fé do povo angolano:

(...) O Vítor dava o apoio político. Mas ele, Malongo, era o tesoureiro e os lucros repartidos em duas partes. Era justo que Elias ficasse com a metade dos lucros, tivera a idéia e dava a cara Os dois amigos dividiam por igual a outra metade. Elias suspirou, discutiu, voltou a suspirar, queixou que estava a ser roubado, mas não tinha safa. Precisava de ajuda urgente, pois nem conseguia o aluguer dum cinema domingo de manhã para fazer o show. (...) (PEPETELA, 2000, p.352)

O interesse individual e o coletivo confrontam-se nesse jogo paródico e irônico, culminando com o acerto entre a tríade, agora pronta a concretizar seus planos de manipulação dos menos preparados para analisar e criticar, oferecendo uma falsa esperança ao povo, agora centrada em aspectos místicos, psicológicos, como uma forma de desviar a atenção dos aspectos materiais.
A voz de Aníbal, em longo discurso, veicula idéias que projetam, ainda, uma esperança para o povo angolano, estas, baseadas em ações e políticas reais, não em sonhos ou êxtases, mas de forma concreta, por meio de transformações no campo social, político e econômico. Em toda a narrativa, e também neste episódio a voz de Aníbal é o contraponto às idéias que veiculam um individualismo exacerbado em oposição aos interesses coletivos e nacionais. Sua crítica se estende aos personagens antagonistas, de forma a enfatizar a crítica irônica tecida pelo narrador em terceira pessoa.
Apontando tanto as divisões entre as sociedades dentro do país, entre as sociedades tradicionais e a nova burguesia, quanto a divisão dentro da própria burguesia, bem como sua sede de poder e conquistas, o herói da narrativa organiza um discurso analítico que se opõe às ações dos antagonistas. Vítor e Malongo são criticados por Aníbal, de forma clara e aberta, como responsáveis pelos descaminhos do país. São os aliados de Elias os que enriquecem à sombra do Estado, escondendo-se, posteriormente nos tecidos da religião, forjando uma aparência de puros e honestos. O texto vem desmascarar essas aparências de alguns grupos burgueses instalados no território, cujo único objetivo resume-se em benefícios pessoais.
A crítica culmina no Templo, já instalado e concretizado, a custo de uma organização envolvendo o político, o empresário e o "profeta", cujo ápice se dá pela carnavalização do culto a Dominus, enunciado pela voz do narrador, um caso de polifonia explícita, em que as categorias da carnavalização da literatura se fazem presentes, ecoando na Igreja da Esperança e da Alegria do Dominus. Segundo Bakhtin
"(...) É a essa transposição do carnaval para a linguagem da literatura que chamamos carnavalização da literatura. (...) O Carnaval é um espetáculo sem ribalta e sem divisão entre os atores e espectadores. No carnaval todos são participantes ativos, todas participam da ação carnavalesca. (...) ou seja, vive-se uma vida carnavalesca. (...) desviada da sua ordem habitual, em certo sentido uma "vida às avessas", um "mundo invertido"("monde à l'envers").(BAKHTIN, 1981, p.105)

No "Templo", um antigo cinema, acontece o primeiro espetáculo de luzes, sons e cores que alucinam a multidão de fiéis ali presentes, comandada por Elias, o profeta do futuro. A presença do público em roupas coloridas, e dos fiéis, que traziam "calças e camisas à maneira européia, tropicalizadas pelos panos garridos feitos na África Textil de Benguela" (PEPETELA, 2000, p.368), marca a excentricidade do espetáculo que ali se anunciava, em que o colorido e o popular das roupas se unem ao colorido e ao cômico do carnaval. A excentricidade é a segunda categoria específica da cosmovisão carnavalesca e permite que se expressem - em forma concreto-sensorial - os aspectos ocultos da natureza humana. (BAKHTIN, 1981,p.106)
A excentricidade revela-se também na música, assim, aos ritmos das músicas africanas e antilhanas, amplificadas por milhares de watts no aparelho de som emprestado da Cultura1, Elias conduz o show excêntrico, por meio do qual o público presente liberará suas emoções, propiciando um novo modus de relações mútuas dos homens com os homens (BAKTHIN, 1981, p.106), em que a hierarquia se dissipa, pois o som atraía "gente dos bairros vizinhos, até mesmo diplomatas" (PEPETELA, 2000, p.368), que misturavam-se aos grupos de calús, vindos das farras de sábado, e que pensavam em continuar a festa ali na Igreja. Essa mistura de classes sociais, reproduz a familiarização. Sobre a familiarização entre os homens, Bakhtin diz que
"As leis, proibições e restrições que determinavam o sistema e a ordem da vida comum, isto é, extracarnavalesca, revogam-se durante o carnaval: revogam-se antes de tudo o sistema hierárquico e todas as formas conexas de medo, reverência, devoção, etiqueta, etc. (...) [1a categoria]" (BAKHTIN, 1981, p. 105-106)

O cinema, transformado em Igreja, aparecia excessivamente enfeitado de flores, e apresentava no palco um Elias trajado com uma blusa de todas as cores, com elementos da cultura nacional, fantasiado para um público em que fiéis, descrentes, curiosos e interesseiros misturavam-se e integravam-se, inicialmente pelo colorido das roupas, e, finalmente, pelas palavras proferidas em uníssono, pelas músicas assimiladas e dançadas no mesmo ritmo. Elias, assim que pegou no microfone, tratou de sintonizar a cadência da fala ao batuque:

(...) esta é a Igreja de Dominus, todos são benvindos, os fiéis são benvindos, os curiosos são benvindos, os inimigos são benvindos, os caluniadores são benvindos, os descrentes são benvindos, todos são de Dominus (...) o batuque aumentou de frenesi e Elias pôs-se a bungular, vai e ensina, Dominus disse, vai e ensina, Dominus falou, que as mulheres ouçam, Dominus falou, que os homens ouçam, Dominus falou, que as crianças ouçam, Dominus falou, que os surdos ouçam, Dominus falou, que os mutilados ouçam, Dominus falou, que os estropiados dancem, Dominus falou, que os cegos dancem, Dominus falou, que os tristes cantem, Dominus falou, que os viúvos cantem, Dominus falou, que os espíritos dancem, Dominus falou, nas folhas dancem, Dominus falou (...) e a multidão começou a bater palmas, a repetir a ladaínha Dominus falou, os olhos a se revirarem, os corpos a tremer, o rítimo do batuque entrando, entrando, os olhos a olharem mais para dentro (...) (PEPETELA, 2000, p.372)

Capaz de conduzir o povo à hipnose, utilizando-se da música, das cores, dos odores das flores, do compasso da música, do ritmo do corpo, da retórica, da emoção e da fé, Elias celebra seu espetáculo em grande estilo, conseguindo, inclusive, convencer o povo de seus dons de cura, ao repelir os calundús dos antepassados de uma mulher que, xinguilando e rebolando, caiu ao chão para que Elias a despertasse. Seguro de seu sucesso, Elias retoma o culto, passando a recolher as contribuições espontâneas, concretizando as categorias do carnaval, quando todo o povo se inicia na dança, acompanhando seu profeta:

(...) pois Malongo balançava com a ladaínha, a qual atingia a cadência máxima, Elias agora totalmente solto e iluminado, proferindo Dominus falou, impondo a cura pela mão à fila de gente que subia para o palco e xinguilava, impondo a mão a toda a assistência, a qual cantava a dançava e ria, absolutamente sintonizada, havendo um ou outro feiticeiro que subia ao palco para se despojar dos seus feitiços, perna de galinha, pedaço de osso, resto de orelha humana, pregos ou paus, figurinhas de madeira, feiticeiros arrependidos, agora livres, numa festa sem precedentes em Luanda, e os caxicos da Igreja passavam entre as pessoas com sacos, enquanto o bispo dizia, suando e rouco, Dominus falou, só dá quem quer, Dominus falou, ninguém é obrigado, Dominus falou, o descrente não deve dar, Dominus falou, o dinheiro é para a Igreja, Dominus falou, (...) os que desamam não devem dar, Dominus falou, (...) não queremos dinheiro sujo, Dominus falou (...) todo o povo dançando e se beijando e se tocando, se massembando mesmo nas filas e nos corredores e depois do Largo à frente do Luminar e nas ruas adjacentes, batendo os pés e as palmas e dizendo Dominus falou (...) (PEPETELA, 2000, p 375)

Se não ocorrem mésalliances (BAKHTIN, 1981, p. 106) formais na narrativa, é possível observar no corpus alguns indícios dessa categoria da carnavalização, seja pela relação de Elias com Micaela ou pela relações de liberdade e até de libertinagem entre os integrantes da Igreja, como se observa no recorte acima, quando "todo o povo", no "culto" se toca, "dançando e se beijando e se tocando, se massembando", de forma a propiciar relações que possibilitarão as mésalliances. "À familiarização está relacionada (...) as mésalliances carnavalescas [3a categoria]. (...) Entram nos contatos e combinações carnavalescas todos os elementos antes fechados, separados e distanciados uns dos outros pela cosmovisão hierárquica extracarnavalesca." (BAKHTIN, 1981, p. 106)

Os participantes do espetáculo deixam o interior do cinema, local em que acontece o culto a Dominus e ocupam o espaço das ruas, invadindo os mercados e praças, os muceques, e outros lugares públicos, como uma forma de coroar o espaço do carnaval, segundo Bakhtin.
No corpus acima, encontram-se, ainda, elementos da profanação, uma das quatro categorias da carnavalização. O sagrado e o profano fundem-se nas imagens que o narrador cria em seu discurso. Polifônico, o discurso do narrador mescla os discursos indiretos e diretos, sem qualquer formalidade, fazendo proliferar vozes como o pensamento de Malongo ou de Judite, que assistia ao culto na condição de curiosa, bem como a de Elias, que o tempo todo interfere com sua retórica hipnótica para conduzir o culto da Igreja de Dominus, concretizando na escrita a subversão das normas e das regras impostas pelo carnaval. "O carnaval aproxima, reúne, celebra os esponsais e combina o sagrado com o profano, o elevado com o baixo, o grande com o insignificante, o sábio com o tolo, etc. A isto está relacionada a quarta categoria carnavalesca: a profanação. Esta é formada pelos sacrilégios carnavalescos, (...)" (BAKHTIN, 1981, p. 106 )
A paródia do texto bíblico ocorre em diferentes níveis, seja no vocabular, por meio da invocação do nome Elias, o Messias, de acordo com o Velho Testamento, aquele que viria para conduzir e ensinar ao povo uma nova mensagem do Senhor Deus de Israel, seja pela paródia da forma como se apresenta o Profeta nas páginas finais, coroado pela glória atribuída por si mesmo e pelo povo, imbuído do poder de afastar os maus espíritos, a exemplo de Jesus Cristo. É o próprio Elias quem declara sua Unidade com Dominus, a exemplo da Santíssima Trindade:
"(...) e ele começou a falar daquela maneira dele sem mexer os lábios, uma voz profunda (...), Esta é a minha voz, Eu sou Dominus que vos falo atrávés de Elias, meu filho querido, e tudo o que ele fizer sou Eu que o quero, e os que o seguirem serão os melhores e os que os seguirem serão os felizes, (...)" (PEPETELA, 2000, p.371)

Personagem e rei de um carnaval, cuja coroação bufa dispensa o uso de coroa material, pois é posta por si mesmo, de forma metafórica, sobre sua própria cabeça, não se encontra no texto um processo de destronamento, uma das ações carnavalescas indicadas por Bakhtin em seus estudos, porque não haverá uma descoroação material, uma vez que o próprio texto se encarrega desse destronamento, por meio do rebaixamento absoluto da figura de Elias, o rei bufo. O riso carnavalesco funciona como uma forma de solucionar o que não produziu efeito pelo sério, ou seja, uma forma de parodiar as normas e regras que regem a nova estrutura social da nação. O acesso dos fiéis às imediações das praças públicas, ruas e mercados vem coroar essa idéia de espaço da carnavalização, pois segundo Bakhtin: "Na literatura carnavalizada, a praça pública, como lugar da ação temática, torna-se biplanar e ambivalente: é como se através da praça pública real transparecesse a praça pública carnavalesca do livre contato familiar (...)" (BAKHTIN, 1981, p. 110)

Invadindo as ruas, praças e mercados a "procissão" dos alegres e felizes integrantes da Igreja de Dominus revivem o carnaval em seu cotidiano repetindo "Dominus falou", marca ideológica do discurso religioso, uma forma de desviar o olhar dos homens do campo do material para a alienação.
O caráter mercantilista e alienador das novas formas de religião que se estabeleceram no país após a abertura política são retratados assim, por Pepetela, de uma forma irônica, pelo viés do cômico-sério, cujo resultado final só poderiam remeter a ações carnavalescas, nas quais a subversão do exercício de cidadania pressupõe a subversão da projeção das utopias nacionais.

PALAVRAS-CHAVE: Pepetela, Angola, A geração da utopia, Literatura, Personagem.

BIBLIOGRAFIA

ATAÍDE, Vicente de Paula. A narrativa de ficção. São Paulo: Mc-Graw Hill, 1973.

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.

BROMBERT, Victor. Em louvor de anti-heróis: figuras e temas da moderna literatura européia. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

MILTON, Heloísa Costa. A picaresca espanhola e Macunaíma, de Mário de Andrade. Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP – FFLCH, 1986.

1 Refere-se ao Ministério da Cultura de Angola.

Saturday, January 06, 2007

A LITERATURA ENGAJADA DE PEPETELA

MANTOLVANI, Rosangela Manhas
(Doutoranda -USP - Universidade de São Paulo / CAPES)

Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, o Pepetela, é ganhador de inúmeros prêmios nacionais e internacionais de literatura e suas narrativas se organizam, como considera Inocência Mata (2002, p. 198) como realista com caráter pedagógico, satíricas, históricas e alegóricas, incluindo contos e teatro.
Pepetela é angolano e destaca-se não apenas como escritor, mas como revolucionário e intelectual, político e guerrilheiro. Seu romance Mayombe (1971) foi escrito em plena frente guerrilheira, em 1971, uma narrativa que trata dos enfrentamentos entre colonialistas e colonizados, ressaltando o lado humano dos que lutaram pelo MPLA - Movimento Popular de Libertação de Angola - nas frentes de batalha.
Considerando a afirmação de Terry Eagleton (2001,p.30) de que “literatura, no sentido que herdamos da palavra, é ideologia. Ela guarda as relações mais estreitas com as questões de poder social”, tratamos da questão ideológica no momento da produção das obras que consideramos engajadas à causa pela libertação dos territórios angolanos, verificando as considerações de Sartre (1998) e suas definições fundamentais sobre a escritura do autor comprometido com as causas sociais, quando considera o engajamento literário uma forma de mediação entre a espontaneidade imediata e o plano refletido, sendo este escritor definido por um conjunto de atitudes, que redundam em suas obras literárias, com uma explícita posição política. Atentamos, também para o que Irwing Howe (1998, p. 5) considera como romance político: um texto no qual assumimos serem dominantes as idéias ou o milieu político, sem que com isso sofra qualquer distorção radical e, propicie a possibilidade de algum lucro analítico.
Nesta abordagem, tratamos da comparação de As aventuras de Ngunga (1972) e A geração da utopia (1992) com Mayombe, considerando seus aspectos semelhantes e, principalmente, suas diferenças. Enquanto Mayombe se consolida como um grande diálogo entre os homens que se encontravam nas frentes de batalha, revelando suas motivações ideológicas e pessoais, As aventuras de Ngunga constitui-se de uma novela escrita em português e traduzida para o kimbundo, que funcionou, também, como manual de alfabetização nas escolas do MPLA - Movimento Popular de Libertação de Angola -, cujo conteúdo político é uma chamada à resistência do povo angolano contra o colonialismo e outras forças de ocupação instaladas no território. Também, A Geração da utopia relata e resume a situação do MPLA e de seus militantes em relação ao contexto nacional e internacional, até o momento do acordo entre as facções revolucionárias locais que se encontravam no conflito da guerra civil, em 1990. Tratou-se, então, de observar o perfil de autor engajado do angolano Pepetela, cujos produtos literários funcionaram como bandeira de luta da resistência ao colonialismo. Seu trabalho literário não se apresenta como um panfleto de propaganda partidária, mas como construção estética criativa, capaz de discutir o contexto político-ideológico e suas nuances de forma crítica, valorizando os aspectos culturais locais e os homens do povo, transformados em heróis de suas narrativas.
Em A gloriosa família (1997), obra do mesmo autor, o contexto histórico do século XVII é recuperado por meio da voz periférica de um escravo, narra a história da ocupação de Luanda e Benguela pela Companhia das Índias Ocidentais - tutelada pelo príncipe de Orange e os Dezenove, da Holanda, precisamente entre 1641 e 1648, período em que Portugal esteve sob o domínio de Felipe II da Espanha -, tratando de desconstruir os textos canônicos do Império português, bem como a ideologia da história oficial. A narrativa cuida de desvelar as relações entre os grupos locais que se encontravam no território angolano naquele período: seus acordos e confrontos, vitórias e derrotas.